ALZHEIMER
* Por
MMendes
Olhando
aquele corpo moribundo de boca murcha e desdentada, tentando morder a própria
língua, não há como imaginar que já foi cobiçado pelos homens e invejado pelas
mulheres. O brilho de seus olhos azuis flamejantes é a única expressão de
comunicação. Não anda, não fala, não gesticula, não se alimenta sozinha. Parece
que sua alma está deixando o corpo aos poucos. Seu punho fechado e os músculos
do antebraço contraídos, parecem ter-se agarrado à vida com medo dela se
desprender. Seus pés possuem movimentos involuntários, como que flutuando no
ar. Foram amarrados à cama, talvez na tentativa de mantê-la presa à terra.
A enfermeira senta-se a beira de sua cama e lê um trecho de um livro qualquer.
Mas, o olhar de Elza se perde no infinito, como quem está com o pensamento
muito longe. Talvez buscando uma saída do labirinto em que se encontra, feito
pelos corredores de vazios criados pelo desfibrar de sua rede neural. De vez em
quando parece encontrar uma saída fazendo foco em alguém. Nesse momento seus
olhos fazem água, sua boca treme e um murmúrio rouco rompe a garganta, como se
pedisse socorro. Instantes depois, perde novamente a sintonia como que abduzida
para o vazio de sua mente.
Seu olhar perpassa os corpos das pessoas, menos o da enfermeira e do marido.
Estabelecem conversa pela flutuação do brilho dos olhos. É como um código morse
de luzes intermitentes que só eles entendem. Penso que seja um código de amor
que só os enamorados conseguem decifrar. O marido cuida de seu corpo, como os
embalsamadores preparavam os corpos dos faraós para a eternidade, na esperança
de que, depois de terem vencido a morte, retornassem a vida em algum momento.
Pede que a enfermeira pinte cuidadosamente suas unhas de vermelho e que deixe
suas sobrancelhas finas e arqueadas, retirando o excesso de pelos, como Elza
gostava. Também não descuida de mudar sua posição no colchão de água, para que
não forme escaras. Ao menor sinal de febre ou expressão de dor, socorre-se do
médico da família que a visita semanalmente.
As memórias de Elza se vão como luzes de apartamentos de um edifício
apagando-se uma após a outra, até que fique em total escuridão. A evolução da
doença sugere que esse apagão segue uma ordem. No início o paciente esquece
algumas palavras ou deixa pensamentos inacabados. Passa a esquecer fatos
antigos e recentes. A medida em vai progredindo, o portador do mal de Alzheimer
se esquece do tempo, se esquece de falar, se esquece dos familiares e por fim,
se esquece de comer, de beber, de ir ao banheiro e no final, de viver.
Os médicos dizem que ainda não se descobriu a causa da doença e portanto não
tem tratamento. Acho que Elza contraiu essa doença da própria história e do próprio
tempo. A vida de cada um de nós é como um neurônio da história e poucas pessoas
conseguem ser lembradas. A maioria morre e não deixa nenhum lembrança ou marca.
Ao morrer toda aquela vida se apaga, tal qual ocorre no cérebro de Elza por
causa do Alzheimer. Quem se lembra quem foi seu antepassado da 10a. geração? E
da 5a. geração? Um grande número de pessoas não sabe nada sobre seus avós, quem
foram, de onde vieram, o que fizeram. O povo não guarda na memória as mazelas
dos políticos. Também os heróis e os artistas descansam esquecidos. Somos um
povo sem memória, somos uma nação com Alzheimer.
A vida é um elo entre extremos. Nascimento e morte, bem e mal, certo e errado.
Como a vida não se posiciona nos extremos, mas antes é o elo entre eles, tudo
que é ruim tem um lado bom e o que é bom, revela seu lado ruim.
Quando detinha alguma capacidade motora, um dos primeiros testes em que
reprovou foi o de desenhar um relógio. Se esquecia de colocar os ponteiros.
Isso significa que a consciência de Elza perdia noção de tempo. Sem passado,
nem presente e nem futuro, presa no limbo entre o infinito primordial e o
terminal. Antes da doença era metódica, muito responsável e cheia de
obrigações. Acordava logo de manhãzinha pegava seu material de trabalho e ia
para a escola dar aulas. Tinha uma carga horária extensa, umas 15 horas de
trabalho por dia. Só parava tarde da noite. Para quem não tinha tempo para
nada, o tempo agora não tem mais ponteiros. Elza que sempre foi uma pessoa
apegada a compromissos, finalmente se livrou deles.
Quando, ainda, sabia falar, já havia se esquecido da relação de parentesco. Uma
vez foi perguntada que parentesco teria com sua irmã Marleide. Não se lembrava.
Procuraram relembrá-la, então ela disse: “- Ah! É minha irmã!”. Logo em seguida
questionaram sobre o parentesco com o marido e ela disse: “-É meu irmão
também”. Elza era filha de pais separados e nutria uma profunda mágoa do pai
por causa da separação. Finalmente a doença a fez esquecer do parentesco e com
isso, acho eu, apagou suas mágoas para sempre. Evidentemente, devido a natureza
da doença, no lugar da mágoa ficou um vazio que não foi preenchido. Também
haviam desaparecido as paixões carnais subsistindo, entretanto, o mais puro
amor pelo marido, que era fraternal.
Elza vive presa numa fração de tempo infinito. Podemos ver em seu olhar o
desejo de viver e a luta que trava contra a morte. A única janela acesa no
edifício cerebral de Elza é a janela do amor. O amor é a pedra fundamental onde
é edificado tudo o que somos e, por isso, é a última coisa a se apagar no
cérebro humano.
Benedito Spinosa, filósofo holandês, ensina que o “homem livre não pensa em
nada a não ser na morte; e a sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte,
mas sobre a vida”. Pensar a morte, por mais paradoxal que seja, é o que dá
sentido à vida. Aquele que encara a morte, corre para a vida. Elza descobriu,
enfim, o sentido da vida.